Em 1959, Mário de Andrade eternizou em seu livro Danças Dramáticas do Brasil a seguinte afirmação: “O Pastoril nunca teve repercussão verdadeiramente nacional, sendo sua maior expansão e florescimento no Nordeste e Bahia, o que já não ocorre com as Cheganças, Congos, Caboclinhos e Bumbas, que deixaram vestígio marcante por quase todo o solo brasileiro”. O poeta paulista, referência nos estudos étnicos do País, completa o seu raciocínio: “Isso ao menos parece provar a pouca importância étnica do Pastoril, coincidindo com a sua pouca importância etnográfica e folclórica. De fato, o Pastoril é um fenômeno de imposição erudita, de importação burguesa, uma verdadeira superfetação, que jamais chegou a se nacionalizar propriamente e nem mesmo a se popularizar”.
Porém, em Alagoas, desde a chegada dos colonizadores portugueses, o pastoril encontrou solo fértil, onde até hoje brota a tradição. Durante todo o século XIX, da mais distante cidade do interior ao mais movimentado centro urbano - na época, a capital Marechal Deodoro - a terra vermelha do massapê, banhada pelo azul intenso do mar, foi palco de incontáveis disputas entre os cordões azul e encarnado. A brincadeira que nasceu num mosteiro, segundo o poeta Mário de Andrade, ganhou ares profanos com o passar das décadas e promoveu, em meados do século passado, ferrenhas discussões entre respeitados estudiosos da cultura popular acerca dos caminhos que o pastoril tomava
“O Pastoril, embora não deixasse de evocar a Natividade, caracteriza-se pelo ar profano. Por certa licenciosidade e até pelo exagero pornográfico, como aconteceu nos Pastoris antigos do Recife”, escreveu o pesquisador recifense, em artigo titulado Pastoril, publicado no site da Fundação Joaquim Nabuco. “As pastoras, na forma profana do auto natalino, eram geralmente mulheres de reputação duvidosa, sendo mesmo conhecidas prostitutas, usando roupas escandalosas para a época, caracterizadas pelos decotes arrojados, pondo à mostra os seios, e os vestidos curtíssimos, muito acima dos joelhos”, detalhava Valente, que na revista Brasil Açucareiro, de 1969, noticiou: “Os jornais da época censuravam o ar indecente de que se revestiam certos presépios, lembrando que a polícia, no seu propósito de zelar pela moral pública e pelos bons costumes, devia cancelar o seu funcionamento”.
A origem e o significado
Apesar dos rumos diferenciados que o pastoril seguiu nos diversos povoados do Nordeste, os pesquisadores costumam dar a mesma versão para a origem e o significado da manifestação folclórica. De acordo com Mário de Andrade, a primeira idéia de representar o nascimento do Menino Jesus foi do monge Tuotilo, ainda no século 10. Primeiro chamada de Presépio, a dramatização da chegada do filho de Maria à Terra fragmentou-se com o tempo, transformando grande parte do espetáculo em jornadas soltas, canções que contam a aventura das pastoras em direção a Belém para visitar Jesus Cristo na manjedoura.
“Na verdade, a invenção dessa representação mística que é o Presépio é atribuída a São Francisco de Assis, que já em 1223, ajudado por seus frades, representou pela primeira vez a cena sagrada”, conta Mário de Andrade
Com a difusão do pastoril no Nordeste, ao longo dos anos cada grupo adaptou a sua apresentação. Alguns personagens se tornaram fixos, como a mestra, líder do cordão encarnado; a contramestra, líder do cordão azul; a Diana, que dança no centro e é sem partido; e as pastorinhas, geralmente seis de cada cordão. As jornadas também sofreram adaptações, permanecendo iguais apenas as chamadas “jornada de chegada” e “jornada de despedida”. A representação da borboleta, da cigana, do pastor e do anjo Gabriel é comum entre os grupos e simbolizam as figuras que as pastoras vão encontrando no caminho até Belém. Algumas para ajudá-las e outras, para atrapalhar a marcha.
A música tem importância singular no pastoril, mas nem ela permaneceu intocável. Com a formatação profana do auto natalino, até os grandes sucessos das rádios na época tinham espaço durante as apresentações. “Interpretadas pelas pastoras em busca de aplausos e agradecimentos aos seus partidários, cançonetas, valsas, modinhas foram introduzidas como ‘parte’ dos atos e depois, à proporção que foram sendo música da moda, compareceram tangos argentinos, fox-trotes, boleros, rumbas, congos baiões e até macumbas e xangôs, divulgados pelos discos, além naturalmente do samba e dos maxixes brasileiros”, relatou Théo Brandão em seu estudo Folguedos Natalinos.
Formadas de violões, cavaquinhos, trombones ou saxofones, pandeiros e surdos, as orquestras que acompanham as jornadas do pastoril contam ponto pela animação, mas tem o número de músicos determinado pela condição financeira de cada grupo. Houve tempo em que diversos poetas duelavam, criando jornadas para atacar o cordão adversário e exaltar o próprio cordão. As “chateações poéticas” originavam ainda palavras de ordem, como as que foram recolhidas por Théo Brandão: “O encarnado no seu palacete. O azul levando cacete”, ou “Azul é o sol, azul é o mar, azul é a rainha que nós vamos coroar”. Tamanha as disputas, os pastoris invadiram as rádios, primeiro em Maceió e depois no Recife, se tornando cada vez mais populares e tradicionais nas duas cidades.
Ao conversar com pessoas que dedicam suas vidas para conservar o pastoril em Alagoas, a impressão que dá é que elas mantêm um elo sagrado com seus ancestrais - um canal por onde se alimentam de entusiasmo e da certeza de que estão cumprindo o seu papel para firmar e, sobretudo afirmar, sua identidade cultural. Apesar da falta de apoio institucional e das deturpações promovidas pelas mudanças do comportamento humano, estas manifestações chegam aos dias atuais com diversas características ainda conservadas. Nas linhas a seguir, o leitor vai conhecer brincantes alagoanos e as suas declarações emocionadas de amor pela cultura popular.
Dedicação tamanho família
A família inteira de Jeane Darc participa do Pastoril Menino Jesus. Mais conhecida como Jane, ela tem 39 anos e coordena 22 pessoas em dois ensaios semanais. Entre os integrantes do grupo, o esposo de Jane, José Vanildo, é o animador do cordão encarnado; a filha mais velha, a universitária Rafaela, 18, estudante de Pedagogia, é a Diana; o único filho tem 14 anos e é o pastor; a filha mais nova, Daniela, é a borboleta; e a Renata, a filha de 16 anos, é a contramestra. “O apoio da família é fundamental. Meu esposo no começo não gostava muito da idéia porque não dava dinheiro. Hoje ele adora o Pastoril. Depois dos ensaios, é ele quem leva todas as meninas para casa”, revela Jane, enaltecendo a dedicação de José.
Foi na Catedral Metropolitana de Maceió que Jane dançou pastoril pela primeira vez. “Eu tinha uns 12 anos. Quem ensaiava era Eudora Vasconcelos. Parei com 15 porque ela acabou o grupo de adolescentes e ficou só com o de idosos”. Quando os filhos de Jane estavam freqüentando a catequese, na Paróquia Menino Jesus de Praga, no Sanatório, ela convenceu as mães de outras crianças a montar um pastoril na igreja. “Eu queria voltar a ensaiar. Mas depois de um ano, ocorreram as desistências. Ao mesmo tempo, falei para mim mesma que iria conseguir. E consegui”. Desde criança, ela diz que tem fascinação pelo Pastoril. “O meu desejo é reativar o Pastoril da Catedral. É difícil porque agora aquela área é toda comercial, mas não é impossível. As pessoas dizem hoje que a cultura popular é cafona, mas antigamente toda a elite dançava”, recorda.
Depois das missas na Catedral, Jane e as demais pastoras costumavam já se encontrar no palco, preparadas para começar a apresentação. “As disputas eram divertidas. A minha família sempre ia assistir. O dinheiro arrecadado pelos cordões era destinado a uma escola de domésticas que havia ao lado da igreja. Os partidários que não tinham dinheiro davam abóbora, galinha, tinha fazendeiro que dava até cheque. A gente pendurava com alfinete todo o dinheiro na roupa. Era muito bonito. Hoje em dia, as pessoas nem conhecem mais o pastoril. Quando contratam, querem pagar com lanche e transporte, mas eu não vivo de lanche e transporte”, reclama Jane. “Antes, todas as escolas tinham o seu folguedo. Agora é só televisão e internet que interessa aos jovens”, conta ela, que é agente cultural do Estado e dá aulas de pastoril em seis escolas da rede pública de ensino.
Os CDs que “ressuscitaram” pastoris
O grupo Recordar é Viver surgiu há dez anos, quando Lucineide Medeiros, 38, foi convidada para ensaiar um pastoril na Igreja do conjunto Salvador Lyra. “Mas só podia participar quem freqüentava a missa e, então, faltou menina”. Persistente, ela se juntou às amigas da vizinhança. “Formamos um grupo misto, com crianças, jovens, adultos e idosos. Nosso objetivo é reunir todo mundo em prol da cultura popular”, explica Ana Ferreira, 66 anos, a contramestra da turma, que na infância não teve oportunidade de dançar pastoril. “Cresci na Paraíba e por lá não existe essa dança. Hoje não me vejo fazendo outra coisa”. Nilda Santos, 52, diz que tinha o desejo de ser pastora guardado há muito tempo. “Só agora é que estou vivendo a minha juventude”, conta, dizendo estar feliz e orgulhosa.
Ex-aluna do folclorista e professor Pedro Teixeira, Lucineide, a diana do grupo e caixa de uma casa lotérica, começou a dançar aos 5 anos. “Levei muita pisa do meu pai. Ele não gostava de me ver nos palanques, durante as festas”. Certa do que queria, ela fazia de tudo para não perder as apresentações. “O grupo do professor Pedro era muito conhecido, estava sempre viajando. Uma vez, meu pai disse que só deixava eu viajar se minha irmã fosse junto. Ela não gostava de pastoril, mas convenci dando presentes. A gente já estava esperando o ônibus e ela desistiu. Eu fui, mesmo sabendo que levaria uma pisa quando voltasse para casa”. Mãe de três meninas adolescentes, Lucineide ia ensaiar com os bebês a tira-colo. “É como se fosse uma profissão, eu me sinto realizada dançando pastoril”.
A dedicação da equipe resultou na gravação de dois CDs, com mais de trinta jornadas diferentes. “O mais gratificante foi saber que muitos pastoris foram reativados por causa dos discos”, conta Ana Ferreira. Um deles é o de Igaci. “A pessoa que ensaiava o pastoril de lá faleceu e o grupo havia acabado. Quando ouviram o disco, umas meninas se juntaram, aprenderam as músicas e hoje estão dançando”, explica Lucineide. “Voltar a dançar pastoril foi como ganhar um presente. Fico relembrando meus tempos de menina”, diz Ângela Maria, 52, natural de São José da Lage. O grupo quer, na véspera do Natal, se apresentar em Itapetim, Pernambuco. Tem estadia garantida, mas falta transporte. “Também estamos tentando lançar um DVD. Gravamos até com o padre Antônio Maria”.
A vitalidade da cultura popular
O nome Áurea de Barros Tavares é quase sinônimo de pastoril
O sonho de criança de um dia subir no palanque e dançar o pastoril, Elúzia Maria Correia Cordeiro, 50 anos, nunca realizou. Nascida
Romildo Manoel da Silva tem 57 anos e é o músico mais requisitado pelos grupos de pastoril
3 comentários:
Zapeando na internet para procurar uma foto de um baile pastoril,encontrei seu blog.Maravilhoso!
Amiga como escritora e pesquisadora baiana,apaixonada p/folclore,fiquei encantada.
Tenho q/lhe parabenizar. bjks
VC esta de parabéns sua pesquisa sobre O PASTORIl, susou a paixonada pela cultura. Sou arte educadora.quero forma um grupo de pastoril na escola onde trabalho, mais não tenho as musicas e CDs . se vc tem por favor mande para (jeronimo.38@hotmail.com)fecarei esperando beijos
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